sexta-feira, 15 de abril de 2011

UM TOCADOR DE CONCERTINA NASCIDO Á BEIRA DO TEJO

Sexta, 05 Março 2010 15:33
Há sessenta e um anos nascia no Patacão de Cima, António Moreira, filho de pescadores do Tejo, descendentes de avieiros. Se nesse já afastado ano de 1948 ainda se poderia pensar ter como destino a labuta no maior rio da Península, poucos anos depois era evidente que ali já não havia futuro.
Não só porque é natural que os pais desejem uma vida melhor para os filhos, mas porque a outrora fartura de peixe já só era coisa para a memória.
Mas o rapaz, nas suas brincadeiras, ia para além da procura de ninhos, das corridas com aros de bicicleta, das caçadas aos pardais (até com improvisadas armas de fogo), das camionetas feitas com arame, eixos com paus e as pandas das redes, a fazerem de rodas, ou de outros entretenimentos próprios da época e da idade.
Com frequência pegava num banquito de madeira, com a tábua do assento encostada ao peito e à barriga e vai de imaginar que tocava num acordeão. Para que a imaginação fosse mais próxima da realidade, colava pequenos pedaços arredondados de cortiça para fazer a "parte" de teclas.
E foi com este sonho de, em mais velho, ser tocador de concertina que antes de ir para a tropa já era dono de tal instrumento musical.

O primeiro acordeão

Tinha para aí uns dezoito anos quando comprou um acordeão sem ter conhecimentos de música e, mais ainda, sem saber tocar uma nota. Mas era um sonho e este, às vezes, tantas vezes, torna os homens persistentes.
"Fui ter com o Figueira Padeiro, para me dar umas lições. Ia para Santarém aprender música e como já percebia alguma coisa do ofício de carpinteiro, muitas vezes, em lugar de me estar a ensinar música, punha-me a afinar portas, a fazer biscates. O pior é que eu ainda é que lhe tinha que pagar... por cima!"
Custou-lhe o instrumento qualquer coisa como quase dois contos [dez euros]. Muito dinheiro para a época, mas que os pais orgulhosamente apoiaram. Não era nada normal que na comunidade, filhos de pescadores se dedicassem a estas coisas das artes musicais. Artes só da pesca, se bem que naqueles anos da juventude de António Moreira (não esqueçamos, estávamos no final da década de sessenta), outros ofícios despontavam cada vez mais, perante o evidente declínio da actividade dos pais e avós.
Começou a dar os primeiros acordes, com o tirocínio praticado nos célebres bailes dos gaibéus, nos ranchos do Dr. Hermínio Paciência, de António Duarte ou no Tôco, aos sábados ou domingos, quando nas épocas das curas ou das vindimas, as migrações do Alto Ribatejo ou da Beira Baixa povoavam o concelho de Alpiarça.
Bailes esses que contribuíram, sem dúvida, para esta queda pelo acordeão. "Cheguei a ir ouvir o Zé dos Riachos a tocar em bailes de pescadores, nas Barreiras, do lado de lá do Tejo ou mesmo aqui, no Patacão". Era frequente ele tocar, por exemplo, em casamentos de pescadores.
"Isso despertava-me mais ainda a atenção", recorda António Moreira.
Passou depois pela Banda da Sociedade Filarmónica Alpiarcense 1º de Dezembro, mesmo antes das idas para as lições com Figueira Padeiro, onde tocou caixa, "mas o que eu queria era aprender música, não queria seguir a Banda". Acompanhou-o José Branha nessa incursão pela música, na Música [Sociedade Filarmónica Alpiarcense 1º de Dezembro] que não chegou a tocar qualquer instrumento.
Com rudimentares conhecimentos teóricos de música e muito ouvido, eis este descendente de avieiros a tocar em bailes pelo Ribatejo fora. "Nessa altura cheguei a fazer bailes por doze e quinhentos [doze escudos e cinquenta centavos, o equivalente a seis cêntimos].
Fui fazer matinés, a tocar sozinho, a Ulme, ao Chouto, por seis escudos [três cêntimos]. Ia daqui, do Patacão, de bicicleta, com a concertina às costas. Cheguei também a ir com o Zé Branha e o meu primo Manuel, para me ajudarem a carregar com o instrumento".
Claro que havia outros interesses. Como faziam parte do staff do artista, acabavam por entrar sem pagar. "Aproveitavam e sempre davam uns pés de dança", refere-nos Moreira. E em tempos de universos tão fechados, um forasteiro naquele tipo de bailes tinha uma aceitação por parte das cachopas que muitos "indígenas" não tinham, acrescento eu, ao que o artista sorri.
Com digressões daquelas, não se pense que eram só rosas. O tocador sofria. "De Ulme até chegar ao Chouto, são nove quilómetros a subir de bicicleta ... uf!".
E santos da terra fizeram cá milagres, ou seja, actuaste por cá, já "consagrado"?
"Ainda cheguei a actuar, no casal do Lico, quando vinham ranchos de gaibéus para as curas e para as vindimas."
De solista em bailes, a progressão natural acabou por passar pelos tão típicos conjuntos de baile, que nos anos 60 e 70 (e mesmo ainda na década de 80) pululavam um pouco por todo o lado.
Sem que primeiro, com o primo, não deixasse de formar um duo, o Diamante Azul.
"Depois vieram o Estrelas do Ritmo, o Apolo 70 e o 4004, "aí uns 12 anos, em que o Rodrigo e eu estávamos à frente. Com estes conjuntos, já corríamos isto tudo, inclusive o Alentejo".
Nesses tempos havia muita oferta de bailes e daí, muitas contratações de conjuntos, não era?
"Sim, havia muita procura. Mas também havia muitos conjuntos. Até aqui, em Alpiarça.
Havia o Jaime, muito bom a tocar acordeão, o Dó-Mi-Sol..."
E dava algum dinheiro?
"Nessa altura dava. A vida não era como é agora, não estava tão cara. No Verão, principalmente nas férias, por altura das festas, chegava a tocar todos os dias."

Levar a concertina para a tropa

Mas a arte de tocar acordeão não serviu só para amealhar alguns escudos. Para a tropa cumprida em Angola, a companhia da concertina (a actual) foi fundamental, não só para animar a malta, mas para lhe dar algumas regalias. "Ajudava a malta, animava-os e de que maneira. E evitou-me muitas idas ao mato. Este acordeão tirou-me muitas idas, podes crer".
E lá, fizeste bailes para a população nativa? "Não, estávamos em Novo Redondo e depois fui para Gabela. Formámos um conjunto musical e andámos a tocar em vários batalhões".
Mas a vida não é só música. Trabalhou como escriturário na Hidráulica, com o senhor Martins. "Estava lá bem, mas depois fui exercer de carpinteiro, no Patacão, por conta do Júlio Gameiro, a fazer umas barracas.
Aí é que lixei tudo. O mestre de então era o Manuel Pinhão e foi convencer o meu pai para eu ir para lá trabalhar, que sempre era mais perto. Um tipo é novo, não pensa, deixei a Hidráulica, um bom emprego e agora...!"

"Se não fossemos à missa, ficávamos sem sopa"

Naquela altura, já ninguém seguiu a pesca e todos aprenderam um ofício. O tempo em que filho de pescador não frequentava a escola também já lá ia.
Todos foram para a escola da Lagoalva [quinta senhorial de Alpiarça]. Continuar a estudar para além da primária, isso é que não.
Mas os tempos da Lagoalva trazem-lhe à memória um episódio da fé associada ao aconchego do estômago.
"Só tinha direito a comer na cantina, ‘a sopa’, como nós a chamávamos, quem fosse à missa. Se não fôssemos à missa na capela da Lagoalva, ficávamos sem a sopa".
E houve alguém que, por não querer ir à missa, ficasse sem comida?
"Não, porque precisávamos, normalmente todos íamos. Lembro-me de uma familiar minha referir que era o maior sacrifício que tinha que fazer, mas como a pobreza era muita".
Ou seja, poderíamos dizer que entre vocês havia uma verdadeira devoção pela... sopa?
"Era!"
Deixando um pouco para trás as memórias, no Natal de 2006 fomos, numa noite bem fria, até à colectividade Valcavalense assistir a uma revista popular organizada pelos sócios, ou mais concretamente, pelo Grupo de Música Popular de Vale de Cavalos. O salão da agremiação estava cheio. Perante a falta de interesse que a direcção vinha assistindo, desde há anos, pelos tradicionais bailes nestas épocas festivas, a iniciativa, à partida, revelava-se ganhadora.
O espectáculo revisteiro foi abrilhantado musicalmente pelo nosso conterrâneo Moreira, cujo desempenho, assim como dos actores improvisados, foi – a crer nos aplausos e na expressão dos espectadores – bem sucedida.
Esta é, pois, outra forma de continuar ligado à música e ao espectáculo. Agora, actuando em ranchos folclóricos. Ou melhor, continuando, visto que a sua estreia foi um pouco antes da sua partida para o Ultramar, então dito português, no Rancho Folclórico da Casa do Povo de Alpiarça.
Daí para cá passou também pelo Pinheiro Grande e Vale de Cavalos, estando actualmente com o grupo da nossa Casa do Povo. Aqui, não esquece o seu grande impulsionador, Tó Flor, "era um espectáculo, incentivava a malta".
Depois da morte do seu criador, o Rancho [folclórico de Alpiarça] teve os seus altos e baixos e em 2008, António Moreira (acumulando com participações noutras colectividades) regressou ao antigo largo do eucaliptal, fazendo par com outro tocador de concertina, Joaquim Correia, de Almeirim. "Aquilo está-se a compor, estou a gostar". Oxalá que o rancho de Alpiarça ganhe o fulgor de outros tempo.
E assim acaba a estória de um rapaz que, sem perceber nada de música, vivendo num meio em que a vida era de uma rudeza indescritível, resolveu comprar uma concertina e, de forma autodidacta, se atirou para a música. Abrilhantou bailes, actuou e continua a actuar em grupos de arte popular, tocando com bons músicos de acordeão de Alpiarça, como Rui Balsa ou Chico Felício [entretanto falecido].
António Moreira abraçou a sua actividade de músico sempre com o apoio e o orgulho dos seus pais.
Ricardo Hipólito *

* Ricardo Hipólito é membro da Equipa Central de Coordenação do projecto de candidatura da cultura Avieira a património nacional. O autor tem ajudado a construir uma imagem aos poucos mais nítida da complexa realidade social dos Avieiros. O cartaz de António Moreira pertence ao seu portfólio.

CULTURA AVIEIRA

ESTE VIDEO FOI FILMADO NO PATACÃO DE CIMA ONDE MOSTRA A ENTREVISTA DE MEU PAI

VIDEOS DE CARNAVAL